Longe de ser exclusiva do século XXI, a migração de pessoas em massa é um fenômeno que observamos ao longo da história da humanidade, porém o fluxo e a racionalidade produzida acerca dele ganhou contornos mais definitivos no direito internacional contemporâneo na década de 1950, com os debates que conduziram à celebração da Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951). A Convenção foi um importante instrumento jurídico pois consolidou as diferentes práticas existentes acerca dos refugiados e estabeleceu padrões de conduta com relação à referida população, bem como seus direitos. O contexto político e social era inquestionável: a necessidade de conferir uma legitimidade aos refugiados da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ao garantir os direitos e deveres dos menos junto aos países de acolhida.
Estamos em 2023, data que marca os dez anos de um fenômeno migratório que trouxe para o debate público internacional um daqueles que acredito serem um dos principais desafios para as Relações Internacionais: a crise dos refugiados, relacionada a atitudes de desespero com relação à vida em situações como guerras civis, perseguições políticas e/ou religiosas. A referida crise e todos os elementos de securitização, nacionalismo, xenofobia e dificuldade de articulação de políticas de asilo e migratórias, sobretudo nos países da União Europeia, que realmente sejam eficientes em receber e integrar em seus Estados os refugiados que chegam ao continente europeu.
As respostas dos países europeus à crise de refugiados iniciada em 2013/2014 foram diversas; as políticas desenvolvidas por cada Estado iam desde o lema “portas abertas” até ações de hostilidade, que puderam aquelas observadas no discurso e na atuação de políticos como Victor Orban (Hungria) e Marine Le Pen (França). Em 2016 foi possível observar mais um avanço de uma política de hostilidade com relação aos refugiados (principalmente no Norte da África): a celebração de um acordo entre a Uniao Europeia e a Turquia que visava reduzir o número de pessoas entrando no continente pela Grécia e “permitia” que a Turquia deportasse pessoas que cruzassem de forma ilegal suas fronteiras rumo ao país mediterrâneo.
Os últimos anos demonstraram não apenas a dificuldade da União Europeia em articular uma política migratória e de asilo comum, mas também na efetivação de ações drásticas como o uso da força para mover os refugiados para outras localidades. A dificuldade dos órgãos supranacionais europeus –Parlamento, Comissão– em desenvolver uma política centralizada foi atravessada pela crise dos refugiados ucranianos, advindos do conflito iniciado em fevereiro de 2022 pela Rússia contra a Ucrânia. No referido contexto, os países europeus tomaram uma atitude mais direta para auxiliar na acolhida dos refugiados da guerra, inclusive ao utilizarem o instrumento da Diretiva de 2001/55/CE do Conselho da União Europeia para a proteção temporária de grandes fluxos de pessoas, algo que não foi utilizado, por exemplo, ao longo dos últimos dez anos para atender à demanda constante de pessoas advindas da África e Ásia.
O presente texto busca fazer uma breve reflexão acerca das respostas dos países europeus à crise humanitária intensificada a partir de 2013, bem como do tema refugio e asilo no contexto da União Europeia, considerando também a recente crise de refugiados advindos da guerra entre Rússia e Ucrânia. As diferenças de tratamento da crise humanitária dos refugiados de outros países frente aos refugiados ucranianos apontam a existência de um padrão moral duplo, que relativiza a violência empenhada aos diferentes grupos de refugiados e enfatiza a dificuldade da União Europeia de lidar com os resultados de sua atuação histórica e recente em países do Oriente Médio e Norte da África.
A Convenção de 1951, discussões sobre refúgio e crise humanitária no Mediterrâneo
A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) buscou, já em seu artigo 1º, uma conceituação acerca do refugiado, ou seja, ao consolidar as práticas já existentes no tema trouxe os casos em que deveria ser aplicada a proteção às pessoas assim entendidas pela ótica da lei.
A Convenção destacou que os refugiados constituem um tipo diferente de imigrante, visto que sua migração ocorre por fatores que lhe fogem do controle – tais como a perseguição por conta de aspectos como religião, raça, grupo social, opiniões públicas. Assim, a migração não seria necessariamente voluntária como as demais que ocorrem com objetivos como melhoria das condições de vida ou busca de trabalho, ou seja, a decisão por migrar para os refugiados é uma escolha pela própria vida, visto que a mesma é ameaçada e se torna insustentável em seu país de origem.
Embora constitua um marco no que diz respeito à proteção dos refugiados no contexto internacional a Convenção de 1951 destinou-se às pessoas que se tornaram refugiadas em razão de conflitos ocorridos até aquela data. Assim, em 1967 foi elaborado e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas o protocolo acerca dos refugiados que ampliou o escopo ao permitir que outras pessoas pudessem adquirir o status de refugiados sem as limitações geográficas ou temporais existentes na Convenção de 1951. Além disso, o protocolo de 1967 passou a ter a sua implementação e monitoramento observados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e juntamente com a Convenção de 1951 apresenta as diretrizes para que qualquer pessoa que solicitar refúgio possa ser atendida.
No entanto, como será discutido ao longo do presente texto, ao observar as repercussões da crise humanitário no mediterrâneo é possível dizer que apesar da existência dos instrumentos jurídicos acima mencionados a atuação dos Estados no que diz respeito à proteção de refugiados continua sendo determinada pelos últimos, ou seja, de acordo com a percepção de interesses nacionais e de grupos específicos ao longo do tempo.
O fluxo de refugiados no Mediterrâneo em direção à Europa, sobretudo à Itália e à Grécia, foi intensificado ao longo dos últimos dez anos. Entre 2014 e 2016 o ACNUR reuniu dados que demonstraram tal aumento, bem como as principais características de tais imigrantes, tais como nacionalidade (Afeganistão, Eritreia, Síria, Líbia), gênero, idade. Ao mesmo tempo em que o fluxo aumentou, os números das mortes (ainda que nem todas foram contabilizadas) ligadas ao percurso marítimo se mostrou alarmante – os afogamentos, naufrágios e desaparecimentos, que de acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) somaram 20 mil até o ano de 2023.
Em 2015 a União Europeia, por meio da Comissão Europeia, apresentou a Agenda Europeia da Migração, um documento conjunto que visava responder ao que entendiam como desafios causados pela crise no Mediterrâneo: lidar com o fluxo de imigrantes junto as fronteiras europeias e a necessidade de elaborar uma resposta à pressão internacional ligada ao dever de salvar as vidas das pessoas que buscaram a rota para protegerem suas vidas. A referida agenda tinha elementos que atendiam aos desafios mencionados e também buscavam demonstrar a preocupação da União Europeia com relação aos tratados e instrumentos internacionais de Direitos Humanos e proteção de pessoas. Já na introdução do texto da Agenda é possível observar uma preocupação dos países membro da União Europeia acerca das pressões internacionais para que fosse tomada alguma atitude com relação à crise do mediterrâneo, bem como com relação ao compartilhamento da responsabilidade pelos imigrantes que no continente chegassem. Assim:
Temos de restaurar a confiança na nossa capacidade de unir esforços europeus e nacionais para darmos resposta à migração, cumprirmos as nossas obrigações internacionais e deveres éticos e trabalharmos em conjunto de modo eficaz, em conformidade com os princípios da solidariedade e da responsabilidade partilhada. Nenhum Estado-Membro consegue responder sozinho e com eficácia ao fenómeno da migração. É óbvio que precisamos de uma abordagem nova, mais europeia. Para tal, precisamos de recorrer a todas as políticas e instrumentos de que dispomos, combinando políticas internas com políticas externas para melhores resultados. É preciso que todos os intervenientes - 3 Estados-Membros, instituições da UE, organizações internacionais, sociedade civil, autoridades locais e países terceiros - trabalhem em conjunto para realizarem uma política europeia comum de migração (AGENDA EUROPEIA DA MIGRAÇÃO, 2015, p.2-3)
Entre as medidas sugeridas na agenda europeia figuravam os seguintes pontos: a) reunião e transmissão de informações que permitissem apontar a existência de indícios de tráfico de pessoas; b) organizar o sistema regional de asilo de forma a realocar o fluxo de pessoas que solicitavam asilo; c) partilhar dados e custos da acolhida do fluxo de pessoas.
Em abril de 2016 a União Europeia e a Turquia apresentaram uma declaração para lidar com a questão do alto fluxo de imigrantes tidos como “irregulares” que chegavam à Europa por meio da Turquia. As ações conjuntas elaboradas na referida matéria davam conta da relocação de imigrantes irregulares que chagassem na Grécia por meio da Turquia; estabelecia que caso as pessoas que fossem retiradas da Europa precisassem de proteção internacional teriam o asilo por tempo necessário na Turquia. A União Europeia se comprometeu também em auxiliar financeiramente a Turquia com gastos referentes ao acionamento de tais ações.
As ações acordadas foram vistas com preocupação por parte do ACNUR e da Human Rights Watch por conta de seus termos e forma de ação; sobretudo pelo fato de que a gestão dos pedidos de asilo (a cargo da Grécia) que determinaria se a pessoa tinha um fundamento para o pedido de asilo ou se deveria ser levada de volta à Turquia. A preocupação com a imigração ilegal, principalmente com possíveis provas de tráfico humano para a Europa pode até ser vista como legítima, considerando principalmente a gravidade de tal ação. Porém, a suposta preocupação com a “imigração irregular” ofuscou o aspecto mais importante: a necessidade de proteção internacional às pessoas que faziam a travessia para a Europa de forma “ilegal” ou “indocumentada” por conta de perseguições em seus países, ou seja, a proteção para refugiados que solicitavam asilo no continente europeu.
Junto à pressão do fluxo de imigrantes rumo ao continente europeu observamos o arrefecimento de dois fenômenos centrais: a força política e social de políticos, partidos e movimentos de extrema direita e o sentimento denominado euroceticismo. O primeiro diz respeito ao aumento de forças políticas que constituem o que se convencionou chamar de extrema direita e que possuem como características centrais: a) o nacionalismo exagerado; b) uma atitude negativa com relação à integração de pessoas de outras nacionalidades, religiões e grupos étnicos; c) a utilização de pautas morais e de costume como forma de mobilização de simpatizantes; d) questionamento de políticas de seguridade social.
Já o segundo fenômeno fiz respeito a uma espécie de movimento de questionamento e/ou resistência aos esforços para a manutenção de um sentido de comunidade junto aos países que integram a União Europeia. Tal movimento pode ser observado em atitudes que vão na contramão de entendimentos mínimos e acordos elaborados no âmbito do bloco europeu, mas também em atitudes de rompimento com o referido bloco e projeto de integração regional, algo que recentemente se observou com a saída do Reino Unido da União Europeia: o Brexit.
O caso dos refugiados ucranianos e as discussões sobre asilo e refúgio
A recente guerra na Ucrânia gerou um número elevado de refugiados que passaram a se dirigir às fronteiras europeias. Nesse contexto foi possível observar que alguns países europeus que até então desenvolviam uma política de imigração restrita ou até mesmo entendida como "anti-imigração" – como na Itália e na Hungria – alteraram seu posicionamento. O uso da Diretiva de 2001/55/CE do Conselho da União Europeia para a proteção temporária de grandes fluxos de pessoas, utilizada anteriormente para tratar do fluxo de pessoas da antiga Iugoslávia em guerra civil no início da década de 1990, foi um diferencial.
A importância de observarmos a existência de um tipo de "duplo padrão moral" no tratamento dos fluxos migratórios rumo à Europa, ou seja, destacar e discutir a diferença de tratamento dispendido aos imigrantes e refugiados que vêm de outros continentes. O recente fluxo migratório ocasionado pela guerra da Ucrânia é o maior desde 2015, quando o número de pessoas de países não-europeus (e de países do Oriente Médio e Norte da África) alcançou seu ápice desde o início da crise do mediterrâneo em 2013.
O tema é complexo e multifacetado, sendo assim devemos considerar diversos elementos, como o desenvolvimento (ou não) de uma política europeia comum, o papel da xenofobia e do racismo na aceitação ou não dos fluxos migratórios ao continente europeu. Alguns pesquisadores – tais como Serena Parekh, Leila Hadj Abdou e Andrea Pettrachin – buscaram discutir de maneira mais atenta a complexidade da situação e trouxeram argumentos interessantes para a discussão sobre uma política comum europeia.
Em entrevista concedida à Al Jazeera em 10 de março de 2022 a professora Parekh (2022), que há anos dedica-se ao estudo do refúgio, apontou aspectos importantes para a compreensão de aspectos das ações de governos europeus no tema com a recente onda de imigração ucraniana devido à guerra. Parekh (2002) apontou inicialmente que entre os fatores que teriam levado tais governos a uma atitude diferente estão: a) o apoio imediato aos refugiados ucranianos advém de um posicionamento mais direto dos países da região com relação ao conflito em curso; b) na crise do mediterrâneo houve incialmente um apoio popular à integração dos refugiados, porém logo ele deu espaço à intolerância e xenofobia por lidar com o medo das populações acerca de atos erroneamente atribuídos à todos os muçulmanos: um comportamento violento, terrorista; c) o fluxo de refugiados na crise do mediterrâneo – especialmente em 2017, quando atingiu um milhão de pessoas –, foi apontado como um desafio muito grande para os países europeus e seu sistema de asilo; porém na atual crise dos refugiados ucranianos os números já ultrapassaram aqueles da crise de 2017.
Os fatores apontados por Parekh (2022) nos permitem argumentar que no caso dos refugiados ucranianos fatores políticos e a recepção dos próprios cidadãos da opinião pública em geral de diversos países europeus foram determinantes para lidar com a crise, ou seja, o fluxo de pessoas, e rapidamente integrá-las nos sistemas de proteção social locais, com acesso à residência, saúde e educação, por exemplo.
Um fator de destaque na argumentação de Parekh (2022) também esteve presente nas discussões de Leila Hadj Abdou e Andrea Pettrachin(2022) acerca da mudança de postura dos países europeus com relação ao tema do refúgio e asilo na crise provocada pela guerra na Ucrânia: a proximidade cultural e histórica que liga o povo ucraniano e países do Leste Europeu (como Polônia e Hungria). Além disso, Leila Hadj Abdou e Andrea Pettrachin (2022) também trouxeram aspectos como: a) cobertura midiática dos conflitos que conduziram às crises; b) percepção dos ucranianos como defensores da soberania e segurança de sua nação, discurso que atrai sobretudo políticos conservadores; c) proximidade geográfica.
Nessa altura você (leitora/ leitor) que acompanhou as crises ou possui interesse pelo tema em questão deve estar se perguntando algo como “E agora, como lidar com as contradições apontadas aqui? A resposta ainda está em aberto, o seja, ainda estamos observando os países europeus, as organizações internacionais e as organizações não-governamentais nos apresentarem mais dados e fatos que permitam atitudes concretas com relação às políticas tomadas por alguns países do continente europeu.
O que fica da discussão que promovi ao longo desse texto são apontamentos para que possamos desenvolver análises críticas acerca dos acontecimentos e políticas que nos cercam enquanto sociedade civil em um mundo altamente complexo e integrado. Assim, destaco aqui dois aspectos centrais ao meu ver: a) a importância de discutirmos mais sobre a reforma das organizações internacionais, a fragilidade de aspectos do direito internacional baseados na reciprocidade, bem como os limites do próprio jogo político internacional; e b) acessar informações de fontes seguras, como organizações internacionais (ONU, UE e Parlamento Europeu) e organizações não-governamentais (Human Rights Watch, Cruz Vermelha), que permitam dar conta das denúncias de tratamento diferenciado e tragam mais dados e fatos para as nossas discussões futuras. Fica aqui o convite à reflexão.
Flávia Abud Luz
Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Esp. em Política e Relações Internacionais pela FESPSP e Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP. Atualmente desenvolve pesquisa sobre o feminismo islâmico e movimentos sociais. Autora do livro "A apropriação dos conceitos de martírio e jihad pelo Hezbollah e a questão da violência como resistência (Editora Appris, 2020)". Integrante dos grupos de pesquisa RESISTÊNCIAS: Controle social, Memória e Interseccionalidades (UFABC); e Ylê-Educare: Educação e Questões Étnico-Raciais (PPGE/Uninove); Grupo de Estudos e Pesquisa em Migrações Internacionais - MIGREPI (UFABC); e Gina - Grupo de Pesquisa em Gênero, Raça e Interseccionalidades.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de janeiro: Zahar, 2017.
COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões - Agenda Europeia da Migração. Bruxelas: Comissão Europeia, 2015. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:52015DC0240&print=true> Acesso em: out de 2023.
PARLAMENTO EUROPEU. Política de Imigração. Disponível em: <https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/152/politica-de-imigracao>. Acesso em out de 2023.
PARLAMENTO EUROPEU. Directiva 2001/55/CE do Conselho. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32001L0055> . Acesso em out de 2023.
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