A tragédia recente no Rio Grande do Sul trouxe à tona uma infinidade de questões a serem debatidas, desde a ebulição climática que vivemos hoje até a velha e, nada boa, problemática sobre a atuação do Estado. Estamos em 2024 e alguns tópicos, já deviam estar consolidados, ser de concordância comum a todos, principalmente quando falamos da coletividade. É impensável que ainda estejamos debatendo se o aquecimento – agora ebulição – global é real ou produto de um punhado de pessoas com intenções obscuras e conspiratórias. Ou levantando a hipótese, que não se sustenta na história mais recente do mundo, de que o Estado não é importante – não estou dizendo que em muitos casos ele esteja sendo eficaz, o que é bem diferente.
O tamanho do desastre é impossível de ser mensurado a distância, mas os números podem nos dar uma ideia do quanto foi afetado um dos maiores estados do Brasil. O Rio Grande do Sul tem 497 municípios e 11,3 milhões de pessoas, representando cerca de 6% da população do país. Dados da defesa civil gaúcha afirmam que 461 municípios e 2,3 milhões de pessoas foram afetadas, sendo 160 mortes, mais de 540 mil desalojados e 80 mil alocados em abrigos públicos. A destruição foi tamanha que qualquer valor que se imagine para ajudar as pessoas, a reconstruir a infraestrutura e para impedir que a economia colapse ainda mais, certamente irá mudar com o tempo.
Juntamente com as duas questões principais apontadas no início, vimos um acalorado debate, principalmente nas redes sociais, de que no momento somente deveríamos ajudar as vítimas da tragédia, e que qualquer análise e / ou crítica sobre possíveis inações do poder público era “fora de hora”. Na mesma medida que muitos afirmam que devemos criticar tudo que foi ou não feito pelo governo para mostrar as pessoas o erro de suas escolhas políticas ou como uma forma de “punição” pelas mesmas, e que já houve várias tragédias pelo Brasil e não “teve a mesma comoção”.
Um debate infrutífero e um tanto quanto sem sentido algum, já que é plenamente possível fazermos os dois, ajudarmos quem precisa e criamos senso crítico sob aqueles que não fizeram o que deviam. A dicotomia entre pessoas e Estado é uma realidade do Brasil 2024 que se apodera de ideologias e discursos neoliberais para estabelecer um “cabo de guerra” onde a sociedade está nas duas pontas e não percebe. O momento que vivemos hoje é de fazer Hobbes e Rousseau se revirarem, tristemente sabendo que é uma tendência global e que deverá se aprofundar ainda mais.
Mas como essa disputa desleal pode ocorrer sem que a sociedade perceba que será a derrotada qualquer que seja o resultado? De que forma esses discursos neoliberais, ideológicos, se entranham na população a ponto de nós transformamos em geradores de críticas a uns aos outros? Seria essa a versão tupiniquim de “Vigiar e Punir” de Foucault? Para entender essas questões conversei com o filósofo e mestre em filosofia política, Rafael Alves.
É claro que podemos e devemos ajudar as pessoas que sofrem com essa tragédia, mas também é fundamental que o exercício crítico seja realizado, a fim de levantarmos as hipóteses, chegarmos os fatos e estabelecermos um nexo causal entre a inação do poder público, e daqueles que o representa, e os acontecimentos. No entanto a realidade das pautas neoliberais e contrárias ao Estado são tão presentes que aqueles que esbravejam contra críticas estão na verdade reproduzindo um discurso pró Estado. “Foucault explica que a vigilância mútua se dá a partir do momento em que a torre do panóptico é destituída e o seu poder fragmentado, do centro para a periferia, da instituição para os sujeitos, onde todos vigiam todos, porém sob os mesmos princípios estabelecidos antes pelo poder constituído” explica Rafael. Nesse sentido as pessoas fazem argumentações umas contra as outras, porém sob a o ponto de vista do governo, ou seja, querendo ou não aqueles que diziam para não criticarmos estão reproduzindo um discurso do poder, nesse caso a lógica neoliberal está servindo a manutenção política.
Um exemplo prático se dá na cobrança da sociedade entre ela mesma, quando defendemos uma maior preocupação do Estado com o meio ambiente, as questões climáticas, surge sempre uma grande parte dessa mesma sociedade que brada rapidamente em dizer que a economia é mais importante, reflexos dos conceitos estabelecidos do nosso tempo. Rafael Alves nos dá um exemplo prático sob a visão de Foucault: “Há uma vigilância dos políticos, porém a partir dos critérios e valores que nos trouxeram até aqui (...), como os princípios e valores de progresso e atraso, que estavam e continuarão em exercício. (...) Mais ou menos o seguinte: “a gente tem que olhar para o meio ambiente, mas e a economia? Poxa vida, não dá para fazer tudo também; mas o povo brasileiro é solidário, então está tudo bem”.
Evidente que a situação é de tragédia, porém de uma anunciada e tão repetida que nem é possível utilizarmos o jargão: “ah, mas o brasileiro esquece mesmo”. No ano passado o Rio Grande do Sul sofreu com várias enchentes, algumas gigantescas e que levou muita destruição e perdas, ou seja, era só observar o recém ocorrido e se preparar melhor, não há desculpa.
Para analisarmos nossa realidade sociopolítica também recorro a Foucault, na verdade a Rafael Alves, que traduz o pensamento de maneira muito relevante e com um alerta: “Se olharmos sob Foucault, não há nada além de pessimismo. Nesses aspectos ele é muito mais próximo de Hannah Arendt, não apresentando uma visão formalista sobre o Estado, mas sim dos conceitos que fundam a sociedade civil da qual decorre o Estado. E, no caso do Foucault, esses conceitos como poder, violência, dominação, são capazes de se auto organizarem e absorverem demandas por mudança de modo a tornar possível que a sociedade continue com as mesmas estruturas de opressão, ainda que com outra forma e estética”. Nosso tempo segue e seguirá sob os conceitos que permeiam nossa sociedade atual, os pontos de progresso, valores, importâncias, serão ainda mais aprofundados. “Para Foucault não há um avanço, ainda que existam alguns movimentos contrários, o máximo que podemos ver é um rearranjo institucional, no qual alguns agentes em cargos de maior posição administrativa, consigam estabelecer critérios diferentes. A relação de dominação continuará existindo.
Fundamentalmente a tragédia no Rio Grande do Sul está mais próxima de se repetir do que não acontecer mais, e por isso que o alerta trazido é preocupante. Precisamos entender que a realidade ideológica e de critérios e valores não deverá mudar e que é central atuarmos como agentes de mudança, talvez não somente na crítica ao poder público, mas a perpetuação desses conceitos. O debate das redes sociais é tão inútil que também encontramos na filosofia. “Você deve se colocar como a arqueologia, como em A Arqueologia do Saber onde ele (Foucault) faz um exercício ontológico de buscar a raiz das coisas, ajudar é também criticar, e vice e versa. Tamos pessoas em diversas frentes aos mesmo tempo, gente ajudando na parte médica, recolhendo doação, ajudando animais, assim como tem gente que pode sentar e criticar e mostrar onde está o problema” Nesse ponto Rafael também avalia o contexto do momento que vivemos, “que a raiz de tudo isso é política, a crise ambiental é uma crise política.”
*Rafael Alves é mestre em filosofia política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analista de negócios com foco na gestão de risco e stakeholders. Atualmente atua como Gestor de Projetos com especialização em metodologias ágeis.
por Bernardo Monteiro
Bernardo Monteiro é graduado em Relações Internacionais pela UNESA e também pós graduado (MBA) em Relações Internacionais pela FGV-RJ; autor do livro: “Para uma Estabilidade Democrática”, possui formação como analista político internacional; atua como escritor, analista político, pesquisador e divulgador científico sobre: política brasileira, história da democracia, democracias ocidentais e sociopolítica;
foi pesquisador associado do Laboratório de Simulações e Cenários da Escola de Guerra Naval da Marinha do Brasil (LSC-EGN/MB); foi professor convidado para a disciplina Análise de Política Internacional para a graduação em Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ; foi professor de Análise de Política Externa para o I Congresso de Relações Internacionais (I CONRI); foi palestrante e professor sobre política brasileira, análise política, geopolítica, democracias e cenários prospectivos.
Referências Bibliográficas:
Podcast “O Assunto. #1.216: A reação do Congresso à tragédia climática”
Podcast “O Assunto #1.214: O socorro financeiro ao Rio Grande do Sul”
Podcast “O Assunto #1.211: A crise climática vista de perto”
Podcast “O Assunto #1.208: O descaso da política com a crise climática”
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